Desde os dias de Winnicott, já existia a falácia de que bebês precisam ficar no berço para não ficarem mimados, precisam chorar um pouquinho para se acostumarem ao seu novo espaço e desenvolverem um sentimento de independência.
Essa prática ainda hoje ganha adeptos sob as melhores intenções de que seus filhos cresçam e se tornem logo pessoas independentes na vida, sem medos e com potencial para enfrentarem as grandes questões humanas.
Perdoe-me por te desapontar, mas tal prática nunca esteve de acordo com as condições naturais pertinentes à espécie humana, tampouco com o saber científico sobre o tema.
Pensa comigo: você já esteve na situação de quem precisa explicar algo complexo a alguém e percebe que seu ouvinte não tem os pressupostos básicos para entender o que você está falando? É que faltam ao ouvinte dados, informações, ou vivências necessárias à capacidade de compreensão do conhecimento apresentado. Tudo para dizer que associar certas práticas de distanciamento à independência do bebê é acreditar que o bebê tem o potencial de compreender a boa intencionalidade dos pais e responder positivamente a isto. É um grande engano.
Veja como funciona o bebê: quando nasce é um corpo e uma psique funcionando apenas no modo de sobrevivência. Através do choro, informa as necessidades biológicas daquele momento e nada mais. Quanto mais alto o choro, maior a urgência. Nessa linha, um bebê se esgoelando, sem ser atendido, é um bebê em sofrimento.
Os seres humanos, os mamíferos mais complexos da natureza, não nasceram adaptados ao seu meio como os demais seres vivos.
Veja o exemplo extremo de rápida adaptação: as tartarugas enterram seus ovos na areia da praia, que, por sua vez, são chocados pelo sol, As tartaruguinhas nascem e ninguém precisa lhes dizer qual direção tomar, pois correm instintivamente para o mar, sabendo, inclusive, que podem viver na terra ou na água, ou seja, os répteis nascem adaptados ao seu meio, não precisando dos cuidados de seus genitores.
Imagino que você deva estar pensando que este argumento contribui para a prática de deixar o bebê sozinho, no berço, no carrinho, no cercadinho, enfim, num lugar ou condição que o force a adaptar-se ao meio e a caminhar em direção à autonomia e independência. Ocorre que a autonomia e a forma adaptativa dos filhotes de tartaruga não se repetem na espécie humana. Os seres humanos são a espécie que mais carece de adaptação ao meio, contudo essa adaptação dependerá do trabalho minucioso dos pais. Os bebês humanos, estejam eles nos polos ou nos trópicos da Terra, serão igualmente indefesos. Mente e corpo humanos nascem carecendo de um longo processo de maturação e adaptação. Nessa linha, precisamos que os pais façam o primeiro movimento de se adaptar ao bebê, para que posteriormente os bebês se adaptem ao meio. Quando esta adaptação do meio ao bebê não acontece de forma adequada, no primeiro momento da vida, podemos aguardar os possíveis desdobramentos no contexto da doença mental e dos desajustes sociais.
Facilmente podemos constatar esta realidade, já que o corpo da mãe é quem realiza o primeiro movimento adaptativo para amparar o óvulo fecundado. Se este lugar, útero, não estiver preparado o óvulo não se fixa e a gestação não começa.
Este primeiro movimento adaptativo da mãe ao bebê acontece desde a concepção, pois o corpo da mulher, para abrigar seu bebê, precisa estar, dia a dia, vivendo um processo contínuo de mudança no sentido de acolher e nutrir a vida que ali se desenvolve.
Mas as mudanças não acontecem só em seu corpo, necessariamente também precisam acontecer em seu comportamento e mente. Apesar de estar em plena saúde para gerar, abriga uma vida frágil lá dentro, que precisa de cuidados. Nesse sentido, ao nível da mente, a mãe incipiente vive a condição de se desinteressar por outros aspectos da vida, esquecendo-se do que pode considerar menos importante, para estar completamente voltada ao bebê, antes mesmo de ele nascer. Este fenômeno, chamado poda sináptica, é de natureza neurológica e afeta diretamente o psiquismo da mãe. Trata-se de uma adaptação cerebral para que a mãe aumente a capacidade de empatia por seu bebê.
Observe que tudo isso está acontecendo para que o nascimento e a sobrevivência do bebê sejam viáveis. Nesse sentido, observamos o processo adaptativo natural no corpo e mente da mulher para dar conta da sua mais nova realidade: SER MÃE.
Mais adiante, o nascimento inaugura uma nova fase, que não é nada além do que a continuação da anterior. Entenda, o nascimento não é uma virada de chave, como se dali em diante tudo se fizesse completamente diferente. Absolutamente que não. Observe um exemplo simples: como no útero não havia distinção entre noite e dia, é natural que bebês nasçam e continuem sem fazer essa distinção por algumas semanas, para desespero dos pais que querem dormir. Frequentemente, encontramos pais estressados porque o bebê trocou a noite pelo dia. Há como dizer ao bebê que ele nasceu e precisa dormir de noite e ficar acordado durante o dia? Lógico que não! Os pais precisam se adaptar ao bebê, pois esta percepção noite/dia virá gradativamente, obedecendo o relógio maturacional e a dinâmica familiar.
Essa é a questão: não tem como dar ordens ao bebê, não tem como enquadra-lo nos costumes sociais. Então, nada mais resta aos pais a não ser se adaptarem a sua nova condição, adaptarem seus costumes, seus horários, seus passeios, reconhecendo que a adaptação do bebê ao meio é longa, processual, repleta de fases e regras naturais do desenvolvimento.
Voltando ao tema, o bebê em seu primeiro ano de vida, ainda está na fase de integração das percepções sensoriais. Logo, visão, audição, olfato, paladar e tato precisam se conectar para que o mundo tome forma e faça sentido. O que equivale dizer, nas palavras de Piaget: o bebê não PENSA o mundo, ele SENTE o mundo. Portanto, não há como o bebê entender nada cognitivamente e, tampouco, deixar um bebê se esgoelando sozinho para aprender independência e autonomia. Isso é de uma ignorância sem fim.
Imagina a cena: dentro do útero a sensação era de segurança, saciedade, calor e afeto eternos. Uma vez nascido, resta-lhe um berço frio, de grades altas que o impedem de tocar e ser tocado pela sua principal base de apoio – a mãe. Claro, como dito, ele não pensará nada sobre tamanho infortúnio, mas certamente sentirá por todos os poros sua condição de abandono.
Definitivamente, no primeiro momento da vida, não se espera que o bebê se adapte ao meio. Os pais, sim, que são cognitivamente capazes, devem se adaptar ao bebê e às suas carências e, aos poucos, apresentar o bebê ao meio, de maneira que, segundo seu próprio desenvolvimento, venha explorar os contornos do mundo novo, suas nuances e infinitas possibilidades, na direção da autonomia e independência que, invariavelmente, alcançará tão logo esteja pronto.
O corredor atento sabe que será eliminado se queimar a largada. Na maternagem também existe a hora certa da “largada”, sob pena de grandes prejuízos. Aliás, ao longo do desenvolvimento infantil, existe a hora certa para quase tudo, de maneira que o aproveitamento venha ser o melhor possível. Cabe aos pais o conhecimento das peculiaridades de cada fase do desenvolvimento do filho, a fim de que, ao final da adolescência, ele esteja classificado para viver a vida adulta com segurança e entusiasmo.