Semana anterior falei sobre o nascimento do “Eu”. Hoje, em continuidade, darei uma pincelada na formação da personalidade na tentativa de demonstrar a importância da primeira infância. Aliás, como já apresentei em outros textos, a fundação do ser humano reside na primeira infância. No entanto é importante que eu esclareça que há várias maneiras de se entender a personalidade. Em nosso caso, estarei me utilizando da abordagem psicanalítica, que não é a única, mas apenas uma delas.
No modelo psicanalítico a personalidade pode ser entendida como a forma com que o sujeito “passeará” pela vida. Para tanto, Freud postulou que durante a infância a forma como as crianças vivenciam as primeiras experiências da vida, o relacionamento com as primeiras figuras de afeto e com seu ambiente possibilitarão a construção de três tipos de estruturas psíquicas, que foram denominadas assim: estrutura neurótica, estrutura psicótica, estrutura perversa.
Bem este assunto é extenso, complexo e discutível, portanto, vou me concentrar no que os pais precisam saber para que os filhos, ao final do processo de formação da personalidade, tenham como resultado uma formação neurótica. Neste modelo de entendimento da personalidade o sujeito neurótico é a melhor das hipóteses, é o “cara normal” (se é que existe normalidade, quando se trata de seres humanos).
O neurótico se sustenta sobre um tripé, ou seja, a raiva, o medo e a culpa. O equilíbrio deste tripé nos possibilita vivenciar emoções de maneira saudável, sobrevivendo à angústia e ao desamparo, nos protegendo dos perigos e nos permitindo viver de forma ética.
A crítica que se pode fazer à nossa sociedade atual é que os pais deixaram de fazer investimentos afetivos nos filhos, impedindo que eles fossem capazes de sobreviver aos momentos de ira, demonstrando sua frustração com os limites impostos. O comportamento dos pais da atualidade cerceou a capacidade das crianças sentirem medo e culpa.
Então, vamos lá. Quando uma criança chora, mediante um desejo não atendido, os pais ficam angustiados com a cena e cooperam para que aquele momento seja extinto, cessando o desprazer que gerou o momento de raiva. Ora, é experienciando tais momentos de desestruturação e recomposição que o sistema límbico, o responsável pelas emoções, tem a oportunidade de amadurecer/fortalecer. Ou seja, quando os pais pensam que estão sendo bons, cedendo à vontade infantil, na verdade estão proporcionando as condições para que sejam adultos emocionalmente fragilizados. Em termos práticos, equilibrar a quantidade de “não pode” e “sim” é estruturante para a vida psíquica. Para isso, mediante o “não pode” os pais precisam suportar calmamente a raiva do filho sem se estressar, consciente de que aquele momento faz parte de uma criação saudável.
Com respeito ao medo, da mesma forma. Os pais não compreendem que o medo faz parte de um “kit” de emoções inatas junto com a raiva, alegria, tristeza, nojo e espanto. Tais emoções são úteis ao aparelho psíquico e devem nos acompanhar por toda a vida. Nesse linha, quando os pais retiram o medo dos filhos, evitando que eles saibam lidar com esta emoção, os filhos buscarão o medo em algum outro lugar.
É no período de latência, entre sete e onze anos, aproximadamente, que este medo se manifesta, geralmente a criança tem medo de dormir sozinha, medo do escuro ou de um bicho imaginário qualquer. Os pais, ao invés de ensinarem os filhos a lidar com tal emoção, o medo, fazem o contrário, desconstroem o medo, dizendo que o bicho não existe, que seu quarto é seguro, que nada vai lhe acontecer de mal. Ensinar a lidar com o medo é ir para o quarto da criança para apoiá-la, por exemplo. Como o medo é estruturante, é importante que ele exista. Neste momento os pais podem ensinar uma canção, contar uma história, caso sejam de uma família religiosa podem ensinar conteúdos de sua fé que cooperem com este enfrentamento, orações, enfim algo que ensine a criança a lidar com o medo. No futuro precisarão deste mesmo medo para lidar com perigos reais ou imaginários, que certamente surgirão ao longo de toda a vida.
A culpa é o terceiro pé do tripé neurótico. Seguindo o mesmo entendimento dos outros dois, quando a criança entrar em culpa, os pais não devem diminuir sua responsabilidade diante da situação constrangedora. Por exemplo, a criança vem correndo de qualquer jeito, estabanadamente, dá um encontrão na avó, que cai no chão. Se for uma família saudável a criança perceberá que o que ela fez poderia ser evitado, pois foi por sua culpa que a avó se machucou. Não tire a culpa da criança dizendo que foi sem querer, ela não viu a vovó pela frente e coisas assim. A criança precisa saber que errou, pedir desculpas por seu erro, mesmo que ninguém tenha se ferido. Imagine que esta criança um dia dirigirá um carro, precisará se locomover pelas ruas com responsabilidade, precisará que o medo e o sentimento de culpa estejam dentro do carro também. Observe o transito nas grande cidade, uma batidinha simples provoca uma discussão, pois ninguém acha que teve culpa, apesar da lei ser clara, prevendo todas as hipóteses.
Concluindo, se tudo correr bem na infância, ou seja, se o tripé neurótico se formar solidamente, haverá grande possibilidade desta criança ser um adulto prudente porque conservou o medo protetor, diante da frustração sentirá raiva e angustia, mas se reestruturará em seguida, diante do erro sentirá o peso da culpa, lhe possibilitando a oportunidade de arrependimento, pedir desculpas, assumir o erro. Esta é a melhor hipótese quando falamos da formação da personalidade segundo o modelo psicanalítico.