Você já viu aquele sujeito que, no cruzamento entre duas vias, para seu veículo sobre a faixa quadriculada e trava o caminho de quem vem pela outra pista? Ou aquele que senta no lugar destinado para idosos no coletivo? Ou o que ocupa a vaga do deficiente físico, sem ser deficiente? Pois bem, todos nós sabemos que estas pessoas existem, mas o que nem todos sabemos é que muito destes comportamentos se devem à forma como a infância foi vivida. O sujeito que assim procede é conhecido pela psicanálise como um sujeito que tem uma personalidade narcísica, ou seja, alguém que está tão preso a sua própria imagem que não consegue enxergar o outro em nenhuma circunstância. No mito grego, em uma de suas versões, Narciso foi condenado a contemplar a si mesmo diante de um espelho d’água, se petrificando. Assim se comporta quem tem este traço do narcisismo em sua personalidade, paralisado, enxerga somente a si. Os outros passam batido.
Vamos entender este processo. Quando o homem nasce, vem dotado de uma energia psicológica, que na psicanálise é chamada de libido. Esta libido é o que impulsionará o seu avanço no desenvolvimento e na vida. Na primeira fase do desenvolvimento, o foco da libido será a boca da criança, esta fase é conhecida como fase oral. O bebê terá satisfação no acalento, carinho, no toque, no cheiro materno, no ninar, e etc, ou seja, em toda experiência estética que envolve a amamentação. Nesta fase levará qualquer objeto à boca, chupará os dedos, a fralda, o que parar em sua frente. É assim que ele retira prazer de seu ambiente. Esta fase foi também chamada de auto-erótica, ou seja, quando o bebê, ainda fusionado a sua mãe, tem prazer com partes de seu próprio corpo, não existindo ainda a consciência de si.
Vencida esta etapa, auto-erótica, por ocasião do nascimento do “EU”, (leia o texto 52 sobre o nascimento do “EU”) chega à fase narcísica, ou seja, a criança se reconhece como um indivíduo, surgindo a consciência de si, agora, separado de sua mãe e de seu ambiente. É o momento em que a criança fará tudo para chamar a atenção, o ambiente estará centralizado nela, mobilizará tudo e a todos que se aproximarem, seja porque faz gracinhas, seja porque faz “arte” ou porque faz birra. Ele se torna o típico reizinho e o dono de toda a atenção de sua mãe. Estes dois primeiros destinos da libido, o auto-erotismo e o narcisismo são importantes e necessários na composição da personalidade. Avançando um pouco mais, lá pelos seus cinco ou seis anos, caminhará para o terceiro momento do destino da libido, onde seu investimento estará nos objetos. Ou seja, sairá do narcisismo e entrará nas relações, haverá um investimento no social, em realizações e no surgimento dos primeiros grupinhos de meninos e meninas.
A interação com as funções materna e paterna é que proporcionará as condições para que estas etapas sejam vividas de maneira satisfatória. Especificamente, neste texto, quero dizer, apenas, como se dá o abandono do narcisismo na infância.
Então, para a criança passar do narcisismo para a próxima fase do desenvolvimento da libido, ou seja, a fase das relações objetais, quando o outro, definitivamente, aparece na relação, é necessário que a função paterna seja atuante, impondo limites aos filhos, trazendo o que Freud nomeou como a angústia de castração. A criança, até aqui o “reizinho”, que tinha vontades e mimos, se tudo acontecer de maneira satisfatória, enfrentará o pai “castrador” de seus desejos. Este pai fará valer as regras, a lei de sua casa, os limites e contornos da vida em família. Se tudo for bem resolvido nesta fase, a lei do pai promoverá a saída da criança do que Freud chamou de Complexo de Édipo. Isto quer dizer que a resolução satisfatória deste momento retira a criança do narcisismo, fazendo com que o outro passe a existir na relação e inaugura uma terceira instância psíquica: o superego, que é quando a lei do pai, seus ensinamentos, sua cultura se internalizaram.
Nesse linha pais, que cumprem satisfatoriamente seus papéis, preparam seus filhos para viverem em sociedade e falhas como aquela descrita no primeiro parágrafo (desrespeito à lei de trânsito, falta de consideração com os idosos e com o próximo) tendem a diminuir no meio social. É com esse entendimento que vejo grandes possibilidades de mudanças no social. Se houver uma conscientização e valorização do papel da família como a célula que dá origem ao tecido social, então, em poucos anos, independente do tipo de governo vigente, nossa sociedade mudará para melhor. Aliás, cumpre ressaltar, inclusive, que parte do caos que vemos hoje nos políticos do nosso país, com certeza, também é fruto de crianças que cresceram com deficiência na formação do superego, por desempenho insatisfatório das figuras parentais.