64 – TDAH, É PRECISO TOMAR REMÉDIO?

Hoje, vivemos em meio a um surto de déficit de atenção. Em razão da incidência recorrente de casos, em 1999, criou-se a ABDA – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DÉFICIT DE ATENÇÃO, uma instituição sem fins lucrativos com o objetivo de disseminar informações científicas sobre o TDAH, capacitar profissionais de saúde e educação, bem como oferecer suporte a pessoas com esse transtorno e a seus familiares. Atualmente, a cada 100 crianças, 1 já possui um laudo psiquiátrico de TDAH. A esta altura, já é comum encontrarmos um TDAH em cada sala de aula, no Brasil.

Veja as três principais perguntas sobre o assunto: Todos precisam tomar remédio? Todo déficit de atenção é um transtorno? Qual é a etiologia do déficit de atenção?

É começando por estas perguntas que sempre deveríamos pensar os diversos quadros de déficit de atenção, pois apesar de encontrarmos características clínicas semelhantes em muitos sujeitos com esta patologia, há quadros clínicos diferentes.

Isto me leva à seguinte conclusão: nem todos são transtornos propriamente ditos, já que nem todos os casos se fundamentam como uma fragilidade egóica de selecionar estímulos, nem todos são uma insuficiência do aparelho psíquico em manter o foco, como também nem todos são herança genética. Mas por outro lado, não há como negar que em todos os casos de déficit de atenção, mesmo quando classificados como transtornos ou não, há fatores ambientais participando de sua constituição. Este é o ponto.

O próprio DSM-5 deixa esta questão bem clara quando afirma que “os sinais dos transtornos podem ser mínimos ou ausentes quando o indivíduo está recebendo recompensas frequentes por comportamento apropriado, está sob supervisão, está em situação nova, está envolvido em atividades especialmente interessantes, recebe estímulos externos consistentes, ou está interagindo em situações individualizadas”.

Sendo assim, não são todos os quadros clínicos passíveis de tratamento medicamentoso.

Neste texto, quero apresentar duas hipóteses em que a psicoterapia seria o caminho mais adequado ou, pelo menos, o primeiro passo no caminho do tratamento do déficit de atenção.

Mas antes de passarmos as duas hipóteses, o que é “atenção” mesmo? A atenção é uma função psicológica que nos permite filtrar e selecionar estímulos. Daí já podemos pensar que o excesso de estímulos no ambiente potencializa a dificuldade de se prestar a atenção.

Nessa linha, imagine que estamos rodeados de estímulos o tempo todo e precisamos focar em um ponto apenas. Por exemplo, enquanto estou escrevendo este texto, ouço sirenes, motocicletas barulhentas; se olho pela janela, vejo os carros trafegando com dificuldade na rua “engarrafada”; vejo o morador do prédio em frente debruçado na janela, o avião que sobrevoa, sem contar meu mundo interno com pensamentos e preocupações. Todos estes estímulos estão concorrendo para capturar minha atenção ou, pensando de outra forma, todos estes estímulos me induzem a treinar a desatenção.

Logo, o que me ajuda a manter o foco neste texto é a minha capacidade de retirar minha atenção de tudo o que não me importa neste momento e concentrá-la em um ponto só: no texto.

Aliás, sei muito bem de onde vem esta minha habilidade de foco. Quando eu tinha aproximadamente sete/oito anos, década de 70, terminadas as tarefas de casa e escolares, sem nada para fazer à noite, apenas aguardar a hora de dormir às 21:00, eu ficava com um aviãozinho em mãos, criando uma aventura, uma história, falava sozinho nas viagens imaginárias e fazia o ronco do motor do avião. Minha mãe contava que eu passava muito tempo entretido com isso. Hoje, psicólogo, sei exatamente o porquê daquele meu comportamento criativo. Era para fugir do tédio.  Sem ter o que fazer, eu focava numa história inventada.

Esta experiência pessoal, que não tem valor científico, remonta uma época em que crianças eram expostas ao ócio e sobreviviam a ele tranquilamente, entretidas consigo mesmas, trabalhando internamente. Não tinham que dar conta de centenas de estímulos simultâneos para se manterem ocupadas. Com isso, sem saber, como efeito colateral, também estavam desenvolvendo a criatividade, uma habilidade que faz muita diferença em todos os contextos da vida adulta.

Já a realidade hoje das crianças urbanas é completamente diferente, pois estão imersas numa quantidade avassaladora de estímulos, principalmente se colocarmos os conteúdos das telas interativas nesta conta.

Retomemos, pois, as duas hipóteses que mencionei no início e que dispensam tratamento medicamentoso.

A primeira hipótese que destaco vou chamar de deficit de atenção por condicionamento. No mundo contemporâneo estamos rodeados de estímulos muito mais poderosos do que em épocas anteriores. Agora refiro-me às telas de PCs e celulares, hoje, tão comuns, inclusive, ao alcance de crianças e adolescentes. O excessivo tempo de tela somado a sua alternância frenética está fazendo nossa sociedade se habituar a alternar estímulos com muita frequência. Nesta prática temos contato com inúmeros textos superficiais e curtos, centenas de vídeos de um minuto, histórias em tirinhas, tudo isto nos fazendo consumir uma enxurrada de informações, na sua maioria, inúteis. Esta dinâmica nos condiciona a trocar de estímulos em um curtíssimo espaço de tempo. E, se por outro lado, precisarmos operar com uma dinâmica diferente, tendo que nos aprofundar em determinada questão, ou em uma tarefa monótona, refletir sobre um assunto, ou ainda dar tempo ao tempo, surge o tédio com o qual não conseguimos conviver. Tudo fica extremamente chato, irritante, moroso, já que estamos condicionados a alternar nossa atenção várias vezes num espaço curto de tempo. Como não conseguimos nos concentrar em uma tarefa apenas, nossa atenção se perde ao menor estímulo diferente que aparece no ambiente.

 Na sequência, as pessoas vão ao médico e se queixam de não conseguirem se concentrar. Sim, isto é um grande problema, mas é um caso clássico de psicoterapia antes do uso de medicamentos, pois para esta finalidade os medicamentos são paliativos e funcionam, apenas, na possibilidade de diminuição de danos. É na psicoterapia que o sujeito fortalece a estrutura de ego para dar conta de estabelecer a filtragem dos estímulos sem a necessidade de medicamentos.

A segunda hipótese chamarei de deficit de atenção proposital, ou seja, que atende a um propósito. Existe uma finalidade psíquica no comportamento desatento do sujeito. É que, no dia a dia, temos desejos, sentimentos, impulsos que são incompatíveis com o tipo de pessoa que tentamos ser (o eu ideal). Nesse caso, a desatenção pode surgir como sintoma neurótico, para maquiar conteúdos do inconsciente. Serve a um propósito psíquico, pois quem presta a atenção faz silêncio interior e possibilita a manifestação de conteúdos que não quer lembrar. Tal situação sugere que o déficit de atenção é uma neurose, ou seja, também não cabe aqui tratamento medicamentoso.

Sintomas neuróticos precisam, primeiramente, passar pelo olhar da psicologia e, na sequência, caso seja necessário, o indivíduo será encaminhado à psiquiatria.

Por fim, penso que você já é capaz de responder comigo as três perguntas iniciais.

-Todos precisam tomar remédio? Não!

-Todo deficit de atenção é um transtorno? Também não.

-Qual é a etiologia deste déficit? Podem ser várias. Um profissional psicólogo te ajudará a descobrir a origem do problema.

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