A MENTIRA NA CRIANÇA

Eis a questão: criança mente?  Criança engana o outro? Os adultos desavisados insistem em olhar para a criança da mesma forma como quem olha para um adulto.  Daí produzem uma gama de histórias fundamentadas na ignorância própria de incipientes.  Primeiro vamos definir o que é mentir.  Segundo o dicionário on-line mentir seria “afirmar ser verdadeiro o que se conhece como falso, esconder, ocultar, faltar com o compromisso, deixar de ser legítimo ou verdadeiro”. Observe que em todas definições, sutilmente ou não, está implícito a noção de falta de caráter.  Aí eu faço outra pergunta:  Podemos cobrar caráter de uma criança?  Caráter é um aspecto da personalidade, que inclusive estará em desenvolvimento durante toda a infância. Então, é razoável afirmar que uma criança aos três, seis ou nove anos anos é mentirosa e igualar sua mentira com a mentira de um adulto?

Vi um vídeo muito interessante de uma família que estava à mesa para a refeição, a criança, também à mesa, desfrutava da companhia dos adultos sentada em sua cadeirinha colocada bem ao lado da mesa da família. O pai, imagino que aquele homem era o pai, começou a fazer uma oração, agradecendo pela refeição, todos curvaram a cabeça em respeito àquela liturgia, inclusive a criança, que apertava os olhinhos e com as mãos tapava o rosto. Uma cena digna de nossa saudosa família tradicional.  A criança, que aparentava aproximadamente entre dois e três anos, imitava os adultos  e, de repente, no meio da oração, come duas ou três colheradas,  depois retorna aos olhinhos fechados e a mão no rosto, para parecer aos adultos que esteve todo o tempo concentrada na prática da oração.  Os adultos perceberam, começaram todos a rir e a filmagem foi interrompida. Realmente foi cômico ( https://youtu.be/EFoS0fMOces ).

O que está acontecendo neste episódio? É provável que esta criança cresça ouvindo esta história engraçada, e eu tenho medo do que pode acontecer se alguém tiver a infeliz ideia de comentar, mesmo que seja no estilo brincadeira, que este menino sempre, desde pequeno, gostava de enganar as pessoas.  Isso, sim, é que seria uma grande mentira.

Entre dois e três anos a criança acaba de sair do período sensório motor e encontra-se no período  pré-operatório, segundo a teoria cognitiva de Piaget.  Não quero me prolongar hoje explicando o que isso significa, mas posso te afirmar que o conceitos abstratos como Deus, oração, fé, jamais pode ser compreendido neste momento do desenvolvimento.  Ainda faltam muitos anos de maturação para a mente compreender, de fato, a seriedade daquela oração antes da refeição.  No entanto, meu leitor pode supor que a criança compreende, pois abaixou a cabeça, tal como os demais, para a oração.  Segundo Albert Bandura o aprendizado se dá por modelação, a criança segue modelos de conduta que lhes são apresentados pelo seu meio.  Logo, o que está acontecendo é mera repetição das convenções de seu grupo social, e, com isso, não estou diminuindo em nada o ensinamento da práticas religiosas pelos pais, pelo contrário, porque  quando a maturidade chegar a criança já terá a prática por costume e apenas lhe será acrescentada a compreensão subjetiva desses atos de fé.

Após esta explicação espero que meu leitor entenda que a criança do vídeo, assim como outras que “mentem” nas mais variadas circunstâncias, não é mentirosa nos padrões do adulto, não pode ser cobrada como alguém que não tem caráter, não foi enganadora,  foi apenas criança.

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