BRINCADEIRA É COISA SÉRIA

As crianças têm um incrível potencial para o aprendizado. São fantasticamente curiosas,  otimistas, têm ampla capacidade de fantasiar, criar, são completamente abertas para o novo, demonstrando interesse de forma generalizada pela aprendizagem. No entanto, nenhuma destas habilidades-capacidades justifica a entrada precoce no processo de escolarização. Hoje, cada vez mais cedo, a agenda escolar é apresentada às crianças, colocando-as num contexto de responsabilidades inadequadas, pois a criança pré-operatória de Piaget não deveria aprender brincando como se pratica nas escolinhas por aí. Deveriam, sim, brincar sem o compromisso de aprenderem, para depois aprenderem de fato. Atropelar a primeira infância com responsabilidades, horários, tarefas, em nome do desenvolvimento humano, é desconsiderar o processo de maturação da criança, em prol de uma engenharia social respaldada em aspectos políticos e econômicos.

As brincadeiras infantis não são meros passatempos inúteis que podem ser substituídos por aprendizagem escolar. É bom frisar: tudo tem o seu tempo. Pois é na brincadeira que as competências são desenvolvidas, como movimentos mais refinados, relacionamentos sociais, construção da ética, capacidade de expressão, de liderança, de percepção e solução de problemas, dentre outras.  As brincadeiras constituem as bases sobre as quais, mais tarde, será construído o aprendizado escolar.

Meus argumentos, respaldados nas teorias de aprendizagem de Piaget, ganham mais força neste momento em que vivemos, no dia primeiro de agosto de 2018 o STF bateu o martelo, em caráter definitivo, a favor da já existente regulamentação do CNE (Conselho Nacional de Educação), que prevê a entrada da criança no primeiro ano do ensino fundamental aos 6 anos completos até 31 de março.  Esta norma do CNE está de acordo com os períodos do desenvolvimento cognitivo de Piaget, pois aos seis anos a criança está, justamente, na fase de transição entre o Período Pré-operatório e o Operatório Concreto, onde a criança se torna capaz de entender e aplicar operações lógicas, conceitos básicos de conservação, números, classificação e princípios que ajudam a interpretar a experiencia objetiva. Logo, é prematuro crianças no período pré-operatório cobrirem letrinhas, cobrirem os pontinhos que levam o coelhinho à cenoura, responsabilidades com dever de casa, etc.  Penso que dependerá da conscientização dos pais para que a decisão do STF produza o efeito esperado. Com a entrada na escola mais tarde, os filhos fortalecerão os vínculos afetivos com a família de origem, já que permanecerão mais tempo com as primeiras figuras de afeto (caso não sejam expostos a tablets e celulares), dando um tom qualitativo a esta convivência.

Vivi uma experiencia singular no início da adolescência, que vale a pena contar aqui. Neste período eu morava numa casa que tinha um quintal enorme, com muitas plantas. Minha mãe sempre falava mal das lagartas, porque destruíam as plantas. Certo dia, encontrei uma lagarta das grandes passeando em meio às folhagens. O tamanho da lagarta me chamou atenção e tive vontade de colocá-la num vidro e mostrar aos coleguinhas da escola. No dia seguinte, ela não estava mais lá, virou um baita casulo. Que sorte eu dei, aprisionei uma lagarta no dia em que se transformou em crisálida. Levei para o colégio, mostrei a todos a façanha de ter um casulo dentro de um vidro. A professora de ciências mandou que eu fizesse um caderno com observações.  Todos os dias faria minhas anotações sobre o estado do casulo. Não tenho mais o caderno, nem lembro das anotações, exceto que levou 21 dias para se tornar borboleta. Achei o processo muito lento, mas não desisti de observar cada detalhe da evolução. Na manhã do vigésimo primeiro dia de observação, o casulo começou a romper e vagarosamente a borboleta foi se tornando visível. Quando voltei da escola, à tardinha, ela ainda estava lá pendurada no casulo. Na época, pensei que ela havia me esperado chegar da escola para uma despedida.  Foi incrível testemunhar o primeiro voo, no crepúsculo da tarde, bateu as asas pela primeira vez e seguiu seu caminho.  O romper do casulo, o esticar e a secagem das asas fazem parte de um processo orquestrado pela mãe natureza, que não pode deixar de acontecer para que, ao alçar voo, o faça com a destreza e plenitude digna de uma borboleta.

As crianças também são assim, apressar o desenvolvimento, queimando etapas, é um experimento não recomendado. Então, vamos aproveitar a primeira infância para nos aproximarmos ao máximo dos pequeninos e construirmos juntos lembranças duradouras e de qualidade a partir das brincadeiras que são próprias da idade.

Como já dizia o sábio Salomão, tudo tem o seu tempo determinado e há tempo para todo o propósito debaixo dos céus. Já um sábio educador pegaria uma carona no mesmo provérbio e diria: criança antes dos seis está no tempo de brincar. Tão somente brincar.

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