A CRIANÇA ENTREGUE A SI MESMA

Certa vez vi uma cena desagradável, na minha opinião. Era uma criança fazendo um escândalo no shopping porque a mãe a contrariou. Um menino, aparentando uns cinco anos sentou no chão, bateu com as pernas e abriu a boca a chorar. A mãe andava à frente, fazendo de conta que estava completamente indiferente à cena da birra. A criança se arrastava e sentava novamente, chamando a atenção de quem passava. Não fiquei para ver o desfecho, mas imagino como deve ter sido.

O fato é que é mais comum do que se imagina os pais perderem o controle dos filhos na primeira infância e só perceberem após ter chegado à adolescência, quando as consequências já não são tão fáceis de serem reparadas.

As pessoas geralmente não conseguem perceber que, apesar das grandes transformações fisiológicas da puberdade, como a chegada de pelos nas partes íntimas, a mudança da voz, a nova modelação do corpo, o comportamento, a mudança do foco de atenção para questões ligadas a vida adulta e etc.; não deixam de ser a continuação do que começou se desenvolvendo desde o nascimento. Tudo o que aflora na adolescência tem seu fundamento, seu embrião, nas experiências vividas nas fases anteriores.  Logo é uma atitude tardia esperar a adolescência chegar para começar a ler livros e adquirir informações sobre o assunto. Quando os pais, preocupados com o futuro da prole, começam na jornada do conhecimento ainda quando os filhos são bebezinhos, não estão adiantados, mas no tempo ótimo para adquirir, fixar e aplicar, já na infância, as sementes do que vão colher mais tarde.

Portanto, hoje quero falar sobre limites. Parece que é o mal do século, muitas pessoas nunca sabem a hora de parar: comem mais do que devem, bebem mais do que devem, gastam dinheiro mais do que devem; tem aqueles que trabalham mais do que devem (workholic), usam jogos eletrônicos mais do que devem, frequentam academias mais do que devem, e por aí vai.  Tais comportamentos podem ter diversas origens, alguns heranças traumáticas, outros aprendizagem social, mas se analisados de perto encontraremos deficiências na elaboração de limites como um fio que faz com que todas estas práticas sejam oriundas desta fonte comum.

Mas vamos parar de teoria, pois na prática este assunto se torna mais fácil. O que as pessoas não têm muito claro é que, com o desenvolvimento da vida urbana, as famílias compactaram seu tamanho e se isolaram na redoma de suas casas e apartamentos. Diferentemente das famílias dos anos 70, por exemplo, quando a convivência com avós, tios, primos era mais presente. Estes familiares periféricos, geralmente, quando não moravam no mesmo quintal, moravam na mesma rua, ou no mesmo bairro, o que facilitava a convivência da primeira sociedade que a criança participava ao longo de seu desenvolvimento. Os primeiros aprendizados sociais eram forjados neste convívio.

Por exemplo, em casa de avó, os netos ficam à vontade, pois é aquela casa em que pode se fazer de tudo, mas lembrem-se, sempre há algo que os netos não podem mexer, sempre há o que é proibido, limitado.  Às vezes pode ser um quarto, a gaveta do vovô, uma caixa de ferramentas,… é esse proibido que cria a lógica que há interdições que ajudam a conviver, pois aos quatro anos, por exemplo, não é comum desejar ver seu vovô ou sua vovó tristes.

Lembro-me que, uma vez, meu avô comprou uma mula.  Eles moravam num sítio, eu e meus irmãos estávamos sempre lá, finais de semana em família na casa da nossos avós. Brincávamos com nossos primos, que também moravam naquela região. Tudo era permitido, menos montar na mula. Então, puxávamos a mula pelo quintal, dávamos ração e água, prendíamos e a soltávamos do curral. Até hoje eu não sei o porquê da interdição, mas a imposição deste limite cumpriu o seu propósito em nossa formação.

Quando brincávamos das brincadeiras da época, (pique, polícia e ladrão, bandeirinha, queimada), todas estas brincadeiras tinham regras e, novamente, nos deparamos com os limites.  Quando alguém não cumpria a regra era retirado da brincadeira como punição e nós ainda dizíamos assim: “___Você não sabe brincar!”  Então o jeito era deixá-lo de fora.  As crianças aprendiam limites não como barreiras, mas como contornos, fronteiras que separavam o que era aceitável do que não era aceitável pelo grupo.  Quando a família periférica, (avós tios e primos) sai de cena, fica mais difícil ensinar limites e regras apenas com teorias sem as vivências que o convívio na constelação familiar proporcionava.

Hoje os pais precisam de mais esforço para cumprir seu papel, pois perderam estas figuras familiares que funcionavam como coadjuvantes na socialização. Sem contar, que o ritmo de vida moderno, onde pai e mãe trabalham fora e os filhos ficam com uma terceira pessoa propicia que alguns pais se acovardem diante dos “mimimis” dos filhos para compensar sua ausência. Talvez uma herança de 30 anos de governo militar tenha promovido a confusão de que disciplina, autoridade e organização seja autoritarismo, sendo assim não entendem limites como a organização da liberdade, mas como cerceamento de direitos.  Neste ritmo os filhos crescem e chegam à idade escolar sem os valores de base para a socialização em um âmbito mais amplo que a família, ou seja, a escola, mas isto é assunto de um próximo texto,…

1 thoughts on “A CRIANÇA ENTREGUE A SI MESMA

  1. Claudia Sampaio says:

    Com sempre, ótima leitura!! Pq temos que entender que somos mais que pais, somos os primeiros professores dos nossos filhos.
    Obrigada

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *