65 – AS FANTASIAS INFANTIS E A SEXUALIDADE

Sexualidade é um tema que nunca sai de moda.  Cada vez mais complexo à medida que novas formas de expressão da sexualidade se apresentam no meio social.  Sempre discutido à luz da moralidade, do preconceito, da religião e, com raridade, à luz da ciência. A ideia deste texto é demonstrar aos pais, de forma muito resumida, como se estabelece o processo que dá origem à mente masculina e feminina.  Quais os movimentos psíquicos necessários para que seu caminho não seja alterado.


Conhecer o sexo do bebê sempre foi objeto de muita ansiedade dos pais, motivo pelo qual os avanços tecnológicos investem pesado para sanar essa curiosidade cada vez mais cedo. Hoje, com oito semanas de gestação, aproximadamente, já é possível saber quem vem por aí.


Por óbvio que quando se descobre que se espera um bebê menino ou menina facilita na decoração do quarto, na escolha antecipada do nome, na organização do enxoval e na própria preparação psicológica dos pais para lidar com aquele ser que logo estará vivendo entre eles. Em que pese tudo isto ser verdadeiro, parece que os pais têm uma crença de que, ao colocarem os bebês meninos e meninas com convivência direta com o mundo externo correlato – brinquedos, cores, brincadeiras, comportamentos – estarão proporcionando uma caminhada segura, rumo à consolidação do sexo biológico para todo o sempre. No entanto, o sexo psíquico é uma construção que depende das primeiras vivências para se constituir adequadamente.  Um aluno dedicado aos estudos das teorias psicanalíticas diria que uma trajetória satisfatória da criança com suas vivências infantis, a partir da adequada relação com as figuras materna e paterna, redundaria em um sexo psíquico compatível com o sexo biológico do seu nascimento.  Então vamos lá, existe um “segredo”, “uma fórmula”, “uma mágica” para unir sexo biológico com a condição psíquica correlata?


Socialmente, hoje, responder a esta pergunta já não é uma curiosidade de todos, à vista da mudança de rota da perspectiva moral sobre o tema. Trocando em miúdos, a sociedade evoluiu para o pensamento de que não importa que o sexo biológico case ou não com sua instância psíquica, afinal, existe espaço para a felicidade humana em qualquer das hipóteses. Então é necessário que eu faça aqui uma parada brusca nessa minha sucinta reflexão para definir com letras garrafais o meu único intuito com esse texto: ESCLARECER O PAPEL DA FANTASIA INFANTIL NA CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE PSÍQUICA.


Esclarecida a base da minha real intencionalidade, continuo. O Século XXI inaugurou uma era de muitas informações.  Elas vêm de todos os lados, para todos os indivíduos, independente de sua faixa etária e condição socioeconômica.  Ninguém escapa de recebê-las. As crianças, como seres indefesos que são, frequentemente, são acometidas de informações que mais atrapalham do que colaboram para um desenvolvimento sexual adequado. E na onda de que tudo deve ser informado, alguns pais, principalmente os que se preocupam com o desenvolvimento sexual de seus pequenos, acreditam que a sexualidade é uma informação que chegará à criança por meio de boas explicações.


Para aqueles genitores que gostam de dar uma mãozinha na construção da sexualidade psíquica dos filhos cabe-lhes o papel de “ensinar a masculinidade e a feminilidade”, destacando as diferenças biológicas e comportamentais de cada sexo em específico, em caráter meramente informativo. Como se a constituição do ser humano resultasse de aula expositiva de como “ser um menino” ou “como ser uma menina”.


O fato é que, a sexualidade tem tudo a ver com a dinâmica natural e fantasiosa da mente infantil em contato com as vivências com as figuras materna e paterna na primeira infância.


Friso novamente: o processo de construção da sexualidade psíquica é natural. Para todos nós, adultos, que vemos um bebê com vagina e outro com pênis, estamos, sim, diante de uma menina e de um menino, respectivamente. E isso não é uma fantasia nossa, tampouco deve ser objeto de relativização. É real. Todavia, a consolidação disto, lá na frente, na adolescência, dependerá de que essa criança percorra satisfatoriamente as etapas que antecedem a fase genital, descrita por Freud. Logo, para essa criança, recém chegada ao mundo, as etapas de um  longo processo psíquico se iniciam e precisam se cumprir  adequadamente para que em sua mente ela se entenda em consonância com seu sexo de nascimento.


Fora todas as críticas que possamos ter de Freud, ele foi profundo e preciso neste tema. Nos “Três Ensaios sobre a Sexualidade” apresenta-a como uma descoberta, uma revelação que, gradativamente, vai sendo descortinada pelo imaginário infantil.  Ela se dá através de um processo longo, que depende desde as fantasias da primeira infância, as vivências com os pais, com os irmãos, ou com outras crianças, até o primeiro beijo erótico na puberdade. Uma verdadeira viagem psíquica com muitas “estações”.


Nessa linha, a descoberta da sexualidade  pelo próprio indivíduo, define o Ser por toda sua existência. A sexualidade consolidada por uma mente que a construiu é inconfundível, pois, à vista de “ser uma descoberta” veio de dentro, do mais profundo interior da mente. Mas se a sexualidade for apenas uma explicação, que geralmente se inicia com a exposição das diferenças genitais, deixa de ser uma descoberta da mente, para ser uma informação técnica, vinda do meio externo, inviabilizando as fantasias de castração.  Sendo assim, como consequência, em algum grau, enfraquece os mecanismos de defesa de identificação, repressão e sublimação. Talvez, até mesmo, haja prejuízo no mecanismo de formação reativa, como consequência natural, já que todos estão ligados ao mesmo processo.


Sim, falei grego aqui para alguns, e não tenho o propósito agora de esclarecer todos esses conceitos técnicos ao leitor. Preciso apenas que pai e mãe entendam que não é, em caráter principal, a religiosidade, o pudor, a moral, a explanação das diferenças menino versus menina que farão com que sua criança se entenda encaixada no sexo biológico lá na fase genital, quando a adolescência chegar. Se fosse assim, não haveria tantos adolescentes confusos com sua sexualidade, advindos de famílias tão bem estruturadas em suas convicções morais e/ou religiosas.


Antes que eu seja alvo de interpretações taxativas e equivocadas, não há qualquer mal (muito pelo contrário) que pais e mães tratem meninos e meninas de forma peculiar, vestindo-os com trajes compatíveis ao que culturalmente se entende por roupas femininas e masculinas,  adjetivando-os de forma correlata, enfim, não é sobre isto. A questão é que alguns genitores acreditam estar fazendo um ótimo negócio em se anteciparem ao informar para a criança pequena que um é menino e outra é menina porque um tem um “pintinho” e a outra tem uma “perereca”. O fato é que a mera informação sobre as genitálias diferentes não consolida a sexualidade de ninguém.


Portanto, nas próximas linhas, demonstrarei como se forma a sexualidade e o quanto é necessário que ela seja uma descoberta balizada pela fantasia infantil e, não, uma informação sobre distinção de anatomias.


Em primeiro lugar, a mente até uns 6 anos, é uma mente fantasiosa, ou seja, nada do que você diga é entendido do jeito que você está dizendo.  É como se você estivesse em uma manhã com nevoeiro. Você vê parte das coisas e pode pensar que são outras. Nada é claro e bem definido.  E o que acontece quando você só vê partes? Seu cérebro vai tentar enxergar o todo, ainda que complete a figura com sua imaginação, com sua fantasia. Exatamente assim é a mente de uma criança até os seis anos de idade.


Para os pais de antigamente, parecia naturalmente normativo o respeito ao mundo fantasioso da criança. Daí, temos as cantigas de roda, as fábulas que eram contadas, os contos de fada, enfim, todo universo que se afinava ao mundo interno da criança e servia de base para lidarem com seus conflitos internos, com o processo de formação psíquica dos futuros conceitos abstratos, bem como da própria descoberta da sua sexualidade. Hoje, o que temos? Um mundo cheio de imagens prontas a serem consumidas de forma instantânea e nada imaginativa e as telas estão aí para provar isso. Temos também pais que pouco tempo têm para participarem e incentivarem as fantasias de seus pequenos.


Lembro de minha mãe nos dias de trovoadas e fortes chuvas com raios.  Éramos três meninos, quase da mesma idade e bem bagunceiros.  Para que nós ficássemos quietos, pelo menos na hora do temporal, quando costumeiramente faltava luz, ela mexia com nossas fantasias dizendo que ficássemos sentados no sofá, porque “o papai do céu” estava “ralhando” (tradução para os mais novos: brigando).   Ao apresentar a trovoada desta forma, não só ficávamos quietos, como também nos instigava a imaginar a existência de um “papai que vive no céu”, “poderoso”, “com uma voz muito mais forte do que a do papai da terra“, “que briga quando os filhos desobedecem”. Era um ensaio para construção da figura da fé e da transcendência.


No caso da sexualidade, o psiquismo se forma, de maneira fantasiada, em torno das relações de poder.  A criança, desde que nasce, se entende como igual às demais.  Em sua mente não existe, inicialmente, a diferenciação macho e fêmea, mesmo que lhe digam que existe leão e leoa, cachorro e cadela, pai e mãe.  Na verdade, todos estes personagens são iguais na mente infantil, até que, por si mesma, eivada da curiosidade, fruto da maturação biológica gradativa, dando-se conta, inclusive, da região erógena no próprio corpo, acaba por descobrir que meninos e meninas são diferentes. Qual a grande diferença? Meninos têm “um apêndice”,  “algo a mais”, onde na menina a percepção infantil nada encontra.  É por causa da descoberta desta diferença, de que uns têm a posse do pênis, “objeto valorizado”, e outros não têm, que surgem as fantasias de poder, que povoam a mente infantil e que levam a criança à convicção de ser um macho ou uma fêmea de sua espécie, ao final de uma série de vivências fantasiosas, designadas como Complexo de Édipo.


Sendo assim, na fantasia do menino que, por algum motivo acidental, descobre que a menina é diferente porque não têm um pênis tal como ele, fica na imaginar o que teria acontecido.  “Talvez tenha sido mutilada”, ele pensa. Em fantasia poderá levantar a hipótese de que isso pode ter sido feito por seu pai e, se seu pai pode fazer isso com ela, poderá fazer com qualquer um. Em fantasia, terá medo de perder seu pênis também.  Então o pênis passa a ser, em fantasia, um objeto valioso, porque algumas pessoas não têm. O fato de ele ter é que o define, que o investe de importância em sua imaginação, como possuidor de um “poder”.  Nessa linha, em fantasia se identificará com seu pai, para não perder o objeto valioso.


Nesse momento, em psicanálise, afirmamos que o apêndice que os machos ostentam como o símbolo de sua virilidade chama-se “falo”.  Um objeto mágico que lhes confere poder.  Razão pela qual muitos homens adultos, ainda presos na fantasia infantil de que detêm o tal poder, precisam ostentar feitos heroicos, atitudes corajosas, expor seus músculos para todos e por aí vai.  Aliás, vale a pena afirmar aqui que, quando o indivíduo é bem resolvido sexualmente, caem por terra os valentões, os machistas, os que acham ser melhores do que as mulheres; do mesmo modo, também caem por terra aquelas mulheres que sentem excessiva necessidade de mostrar que são superiores. Ambos os grupos demonstram ainda estarem fixados lá na infância, quando existia um poder mágico sugerido por suas fantasias infantis.


Então, este menino e essa menina, cuja elaboração destas fantasias lhes foi permitida, nutrirão a descoberta de que é um macho e uma fêmea, respectivamente, de sua espécie.  Ninguém lhes informou isso, foi uma descoberta pessoal, íntima, que veio de dentro.  Na puberdade, se entenderão como homens e mulheres, com todas as características que lhe são pertinentes.


Na prática, há muitas maneiras de se atrapalhar esta fantasia como, por exemplo, quando os pais se propõem a explicar aos pequenos a diferença literal entre meninos e meninas ou quando os adultos tomam banho pelados com o filho/filha.  Isso atrapalha, em algum grau, a constituição da sexualidade da criança, frustrando a construção mental e gradativa dessas diferenças a partir das fantasias.


Para você ter uma ideia do que é uma realidade fantasiada, um pai me contou que seu filho, que toma banho junto com ele e com a mãe, perguntou assim: “por que minha mãe tem dois pintinhos” em cima ao invés de um embaixo”. A pergunta da criança revela o quanto ela é incapaz de perceber a diferença entre o  pênis do pai e o seio materno.  Fora isso, neste caso, o contato com os pais nus o atrapalha a vivenciar a fantasia de onipotência masculina, que é essencial no processo de formação de sua sexualidade.


Já no caso da menina, o processo que dá à luz a gênesis da sexualidade feminina também se dá por meio das fantasias.  No entanto, ao contrário dos meninos, quando as meninas descobrem que são diferentes porque não têm o apêndice sexual, nutrem a fantasia de que ainda o terão, de que ele crescerá, ou que alguém o providenciará. Mas o tempo passa e nada acontece, até que um dia vivencia o duro choque de realidade: meninas não têm pênis e, em fantasia, não têm tudo o que ele representa.  Por ser uma conclusão própria, entendem por si mesmas que, em essência, são diferentes dos meninos.  Nessa linha, com o desfecho adequado do processo de formação da sexualidade chegará à puberdade identificada com sua mãe, com todos os atributos do feminino.  Não foi uma informação, que pode ser, inclusive, negada.  Foi uma descoberta pessoal.


Concluindo, papais e mamães não devem enfraquecer as fantasias infantis.  Permitam que os pequenos vivam essa construção mental à medida que percebem a unidade de vocês, a consideração mútua, o respeito; valorizem-se um ao outro e não discutam o relacionamento conjugal na frente dos filhos, para que as fantasias e identificações necessárias surjam e cumpram o seu papel.


Por fim, alguns conselhos para os pais:


Evitem práticas modernas que têm potencial para atrapalhar a formação da sexualidade, as três mais conhecidas são: (1) pais que tomam banho junto com filhos do sexo oposto desde muito bebezinhos. Ora, se eles forem se acostumando com as diferenças anatômicas, menos espaço haverá para a vivência das fantasias infantis; (2) evitem beijo na boca dos filhos. A boca é a primeira região erógena, portanto, não deve ser estimulada precocemente e, (3) que a diferença genital masculino/feminino seja uma descoberta  e não uma informação debaixo do “manto” de educação sexual.


Quando as fantasias fundadoras da sexualidade ficam bem resolvidas nesta idade, está lançada a gênesis que o guiará até a sexualidade adulta.  Isto não quer dizer que estes sejam os únicos eventos que participam da formação psíquica da sexualidade. Absolutamente que não, no entanto posso garantir que são os principais.


No mais, sejam para as crianças o melhor modelo de casal que conseguirem ser;  amem intensamente os filhos sem abrir mão do amor conjugal; exalem a admiração que sentem um pelo outro, valorizem o cônjuge com palavras e ações, não discutam o relacionamento conjugal na frente dos filhos, para que as fantasias e identificações necessárias surjam e cumpram o seu papel; interditem os filhos na hora certa, mostrando que eles não são o centro de tudo; individualmente, sejam sempre um bom exemplo a seguir e, quando a criança se aproximar de você na fase de identificação, buscando em você a referência de gênero que ela precisa ver, tenha todo o tempo do mundo para se fazer conhecer.

2 thoughts on “65 – AS FANTASIAS INFANTIS E A SEXUALIDADE

  1. Leysiane Buss says:

    Que texto interessante! Nunca tinha lido sobre a consolidação da sexualidade antes. Extremamente esclarecedor.

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